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Presentes

E quando você acha que o dia está perdido, vem uma surpresa boa e te resgata com palavras despretensiosas que, inevitavelmente, te arracam um sorriso bobo e um olhar mais bobo ainda.


Tea & Coffee



Já começou os trabalhos com o vinho, ela pergunta. Ainda não, respondo lamentando. Ando vergonhosamente sem grana, engolindo a seco aquela pindaíba de fim de mês, assediando em vão os bolsos em praça pública, e o supermercado onde compro fiado está fechado. Sendo assim, já viu: pra fingir que estou bebendo algo tão charmoso e simbólico quanto o néctar de Baco, talvez eu faça chá. Nunca fiz chá na minha vida, sou especialista mesmo é em café, o antídoto do cotidiano. Mas hoje não é dia de cotidiano, hoje é feriado nacional, dia de Maria, dia em que todas as bodegas da cidade estão fechadas, dia de ouvir blues, e blues, convenhamos, é uma liturgia que pede whisky, vinho ou, na falta destes, algo que lhes faça frente, como um bom chá, por exemplo, cuja erva ainda não escolhi.



Está sozinho? Praticamente. Quer dizer, depende. Tem um Saramago logo aqui em baixo implorando pela minha atenção e uma leva de gatos no quintal, uma gangue de ladrões de moela de frango, minha parte preferida no ensopado. Se vacilar por um mísero instante com o portão da cozinha aberto, destampam as panelas que ficam sobre o fogão após o almoço com tamanha desenvoltura como se tivessem longos polegares e dedos indicadores... Um deles é nascido há pouco, ainda está mamando, mas já percebi que é o mais astuto do bando, um pilantrinha de marca maior. Sei que você gosta mais de cães do que de gatos - assim como se rivalizam entre nós os Beatles e os Rolling Stones - mas, convenhamos, os cães têm apenas uma vantagem perante os felinos: a fidelidade. Por fidelidade ao seu dono, um solitário e desamparado pinscher é capaz de enfrentar uma alcateia de pit bulls famintos. Já vi vira-lata salvar criança da boca de hot vailer.



Mas como eu disse, nunca fiz chá nessa vida, não tenho chá pré-pronto aqui em casa, tipo aqueles que se compra no supermercado em saquinhos que se penduram na borda da xícara com água quente. O que tenho aqui são algumas poucas ervas - entre as quais não sei sequer distinguir as espécies - e casca de laranja seca. Sabia que se faz um delicioso chá com casca de laranja seca? Minha mãe sempre fazia quando eu era criança. Pendurava as cascas no varal ou na cerca de madeira e lá, por dois ou três dias sob o sol metalúrgico do verão, elas ressecavam. Nunca me explicaram o porquê desse procedimento. Por outro lado nunca quis eu saber, e ainda hoje não o quero: há rituais de família que não se deve explicar. O mundo perdeu certa graça quando passaram a pesquisar e problematizar os mistérios, os ritos, os mitos. Hoje em dia, como aos poucos se tem morrido toda tradição, coisa rara é ver casca de laranja seca aqui em casa. O que impera em nossa cozinha é o tal do boldo, folhas de boldo, chá de boldo, dieta da minha mãe à base de boldo, a pretexto de sérios problemas intestinais. Mas penso eu que nem boldo, muito menos casca de laranja seca combinam com blues, embora eu saiba que a mais profunda origem do blues está em regiões bucólicas da África e, após a migração dos escravos, em regiões bucólicas do Mississippi, onde suponho que boldo e laranja abundavam.
 
Mas, como eu já disse e desdisse, nunca fiz chá, e tenho enfatizado essa minha deficiência alquimista para que perceba que preciso de você aqui, percorrendo descalça os vãos quase nus desta casa, preciso que me ensine a fazer chá, e só assim poderei me realimentar das migalhas da tua voz, como uma rêmora mendigando os restos de comida do tubarão, e quem sabe te ensino a fazer café, meu aclamado café que merece ser degustado nas manhãs pardas e pacíficas de todo o mundo, do Nepal a Tijuana, da África ao Mississipi. Desconfio que entre as ervas que guardo na dispensa deve haver alguns galhotes de camomila, esta sim, convenhamos, desce com mais melindre pelo paladar adentro e soa mais charmosa pela língua afora. E então, dado nosso acordo, você me ensinaria a fazer chá e eu te mostraria o segredo do meu café, fetiche das mulheres que já dormiram comigo, quase uma porção mágica afrodisíaca. Mas não precisa você dormir comigo se não quiser. Por hoje não poderei te pagar um táxi. Quero apenas que me ensine a fazer chá. Que fique aqui por algum tempo me ensinando a fazer chá. E isso me basta, por enquanto.


De Luis Fernando Mifô para mim.

Hugo: A Saga

Eu só fui entender (e acreditar) no ditado que diz "O cachorro é o melhor amigo do homem" quando eu ganhei Hugo. Não, Hugo não foi o primeiro cachorro que tivemos lá em casa, já tivemos Billy, um dálmata lindo. Mas eu, pequena como era sou, meu pai tinha medo de deixar Billy chegar perto de mim pois ele me derrubava no meio da sua felicidade canina (Billy era grandão!). Portanto, eu não tive tanto contato com Billy.

E mais, Hugo é meu, foi dado à mim!  Hugo cabia na palma da minha mão quando o vi pela primeira vez, e foi lá para minha casa ainda filhotinho, com um mês de vida. É tão fofo e amável que conseguiu conquistar o coração turrão do meu pai (tanto é que Hugo, ultimamente, deu para dormir perto do velho). Acompanhei todo seu crescimento, suas travessuras e afins. Hugo faz parte da família, e o amor que sinto por ele é gratuito, e o melhor: é RECÍPROCO! 

Amo a festa que ele faz  toda vez que chego em casa, acho lindo quando ele fica do meu lado quando estou doente (a última vez ele passou o dia e a noite inteira deitado do meu lado, não saiu nem quando painho chamou pra ele comer), amo quando ele vem todo despretencioso à procura de carinho... Enfim: AMO! 

Mas, vez por outra, esse amor chega a ser engraçado. Vida de estudante sabe como é, o dinheiro só dá para xerox e a madrugada só dá para estudar.  Hugo inventou de me acompanhar numa madrugada dessas, e olhem só no que deu:



Decidido a me acompanhar!
Mamãe, posso estudar com você?
Firme e forte!















Mas aí, lá pelas tantas, Morpheu decidiu cobrir Hugo com seu manto...

  Hugo não resistiu e se deitou...

Com o olhar já distante...

... O sono chegou!
 Mas ele, embora dormindo, só foi dormir no seu cantinho (leia-se  debaixo da cama do meu pai) quando eu parei de estudar e fui dormir também.

Tem como não amar?

Um Segundo

Quando você deita a sua cabecinha no meu ombro como se eu fosse a sua casa, reconheço a sensação. O abraço que você busca em mim, eu buscava na sua avó. Eu era você no ombro dela. Acho que família é feita dessa alquimia, que junta duas pessoas de dois mundos diferentes para criar um terceiro. Seu pai e sua mãe fizeram a dois esse lugar em que você vive, assim como seus avós fizeram para mim. 
Desde que você e seu primo nasceram, deixei de ser só, virei igual. Tão grande e tão pequena quanto qualquer um. Estou melhor para seguir em frente, levo tão mais comigo. Olho pra frente: sonhos me esperam. Pessoas, surpresas, conquistas, bênçãos. Olho pra frente: você.

Não acordo nem vou dormir lamentando a falta da sua avó. Esbarro nela de vez em quando. Eu vivo, ela falta. Eu vivo, ela falta. Vejo isso em você. Mas talvez para você não falte nada. 

Algumas vezes não a vejo em você, aí não dói, pois não me lembro. Em outras tantas, você me volta um olhar conhecido, com um jeito conhecido – novo por ser seu, mas, ainda assim, dela. Nessas horas, pontadas. Depois passa. Meus olhos para você são de futuro, minha pequena.

Não sei o que é a morte ou o que existe por trás dela. Sei o que fica. Sei que a ordem das coisas foi abençoada. Sei que você já nasceu ganhando, sorrindo, descobrindo.
Mas ela perdeu, princesinha. Isso não muda. E foi por tão pouco. Um triz. Talvez um único segundo.
Um segundo e o que era futuro virou passado, sem ter sido presente. Um segundo e os planos se rearranjaram na pressa, a medida do sonho passou a ser a do possível. Um segundo e a resposta era outra. O passado virou mentira, desapareceu, passou a ocupar o lugar do sonho.
Mas se aquele dia tivesse tido apenas 23 horas, 59 minutos e 59 segundos. Não houvesse aquele tal segundo e talvez passássemos juntas cada fim de semana, ela a preparar mamadeira, a cantar para você enquanto dança pela sala, nós quatro - você, seu primo, eu e ela - a passear pelo supermercado exibindo suas travessuras e discutindo por causa da marca do molho de tomate. Não houvesse esse segundo e eu sofreria menos ao ver um pôr do sol... Sua avó se foi numa tardezinha qualquer, que ficou eternizada pelo lindo pôr do sol que se exibia naquele instante de dor.

Por um segundo, na verdade, não foi a sua avó: foi o sonho que morreu para ela. Conhecer você, ver seu rosto, pegar você no colo e exibir: "minha neta". Um sonho tão certo. Coisas lindas que a mim não foram negadas. Um segundo e somos só nós duas. E um mundo.

Diante do que fluía como um creme, a vida endureceu. Não ficou triste, trágica, dramática. Tornou-se difícil. Como tantos outros, como todos, estou diante da complexidade. Mas não a admito. Quero, corro, rio, penso, crio para que pareça fácil. Não é possível, no meu momento mais bonito não cabe o difícil, só cabe o que flui. Como creme, dança, como cena em slow motion.

Um segundo, muitos e muitos outros. A vida deu voltas à minha volta e não sossegou enquanto não comecei a escrever. Um segundo e estou eu aqui a falar. Com você e com um mundo. E, um dia, você vai crescer e ter maturidade e sensibilidade o suficiente para ler tudo isso e ter só uma certeza: sua avó sempre te amou.

Um beijo bom, My Little Girl

Titia

Do alto da minha ignorância

Tenho sentido ela distante, indo embora de mim. Resisto a tentação de pedir que ela fique. Não devo, não devo. É hora de ir e deixar em mim o que precisa ficar. Como eu previa, as lembranças já não são frescas, mas, mesmo distante da intensidade, sei muito à respeito dela. Nesse tempo todo de falta, procurei o costume como saída, fiz da ausência um hábito, até que ela virasse paisagem. Só que, de vez em quando, entra um vento de dor por uma fresta insuspeita, atingindo minha pele com um frio de tristeza. Talvez eu sinta para sempre esses arrepios, como quem tem uma doença crônica, um reumatismo de amor que, vez por outra, finca e maltrata. Depois passa. E volta - não há como virar uma página que insiste em se reescrever. E hoje, em meio a dores e cores, lágrimas e sorrisos, percebo algo de bom... Não foi nenhum livro que eu li, não foi nenhum filme que eu vi, foi o que me foi dado a viver e o caminho, o único, o que encontrei para respirar. Foi a minha ignorância. Minha não pretensão, o meu não julgamento e uma lente de amor a distorcer (ou revelar?) a poesia. Antes de ser dúvida, já era texto, já era lido, já era. Arte por ser expressão legítima do que o coração gritava. E assim, inteira, absolvida pela ignorância, cometi a simplicidade de dizer o que sentia. Fiz, sem saber que a sinceridade era um atrevimento. E acho que vai ser sempre assim. Hoje, escrevo.

Indicando

Estava organizando uns papéis meus, e descobri umas antigas anotações que eu achava que estavam perdidas. Eram umas frases copiadas de livros que li, não de todos, mas os que eu julgava dignos de serem lembrados, e fui imediatamente colocá-las no meu caderninho de frases. Sim, eu tenho um, comecei a copiar coisas de livros e filmes que achava interessante aos 14 anos, mas passei um bom tempo sem fazê-lo, e  há uns anos tenho retomado o hábito.

Quando fui passar as frases das folhas antigas para o caderno, tornei a lê-lo e revi anotações minhas de um livro maravilhoso, e como algumas vezes eu me dou o direito de dar dicas de livros por aqui, hoje vou indicar mais um: Fahrenheit 451 por Ray Bradbury.
Talvez muitos já tenham visto o filme, de mesmo nome, do Truffaut (eu não vi ainda, toda vez eu pego pra ver, mas nunca assisto!).
Não sou muito de ler ficção científica, mas desde que li Admirável Mundo Novo (se é que se pode resumir esse livro a um gênero), que leio livros parecidos, como 1984 (George Orwell), Não verás país nenhum (Ignácio Loyola de Brandão), Fahrenheit 451

Fahrenheit 451 foi escrito em 1953 e descreve um governo totalitário, num futuro incerto mas próximo, que proíbe qualquer livro ou tipo de leitura. Tudo é controlado e as pessoas só tem conhecimento dos fatos por aparelhos de TVs instaladas em suas casas ou em praças ao ar livre. Os bombeiros tem como atividade queimar os livros que são encontrados. Até que um dia, um dos bombeiros, Montag, conhece uma menina e começa a questionar sua profissão e a sociedade. E o resto… é melhor você ler!
E só pra aguçar a curiosidade dá uma lidinha nesses trechos que eu coloco logo abaixo (são os que estão no meu caderninho).

Ah, e como pode ser ruim um livro que fala sobre livros? E o melhor é que a única edição brasileira vendida atualmente é uma versão de bolso, ou seja, baratinha, baratinha.  ;)







‘Deve haver alguma coisa nos livros, coisas que não podemos imaginar, para levar uma mulher a ficar numa casa em chamas; tem que haver alguma coisa. Ninguém se mata a troco de nada’

‘Deixar você em paz! Tudo bem, mas como eu posso ficar em paz? Não precisamos que nos deixem em paz. Precisamos realmente ser incomodados de vez em quando. Quanto tempo faz que você não é realmente incomodada? Por alguma coisa importante, por alguma coisa real?’

‘Todos devemos ser iguais. Nem todos nasceram livres e iguais, como diz a Constituição, mas todos se fizeram iguais. Cada homem é a imagem de seu semelhante e, com isso, todos ficam contentes, pois não há nenhuma montanha que os diminu, contra a qual se avaliar. Isso mesmo! Um livro é uma arma carregada na casa vizinha. Queime-o. Descarregue a arma. Façamos uma brecha no espírito do homem. Quem sabe quem poderia ser alvo do homem lido?’

‘Você precisa entender que nossa civilização é tão vasta que não podemos permitir que nossas minorias sejam transtornadas e agitadas’

‘Será porque estamos nos divertindo tanto em casa que nos esquecemos do mundo? Será porque somos tão ricos e o resto do mundo tão pobre e simplesmente não damos a mínima para sua pobreza? Tenho ouvido rumores; o mundo está passando fome, mas nós estamos bem alimentados. Será verdade que o mundo trabalha duro enquanto nós brincamos? Será por isso que somos tão odiados?’

‘Eu não falo de coisas, senhor. Falo do sentido das coisas. Sento-me aqui e sei que estou vivo’

‘Os livros servem para nos lembrar quanto somos estúpidos e tolos. São o guarda pretoriano de César, cochichando enquanto o desfile ruge pela avenida: – Lembre-se, César, tu és mortal. A maioria de nós não pode sair correndo por aí, falar com todo mundo, conhecer todas as cidades do mundo, não temos tempo, dinheiro ou tantos amigos assim. As coisas que você está procurando, Montag, estão no mundo, mas a única possibilidade que o sujeito comum terá de ver noventa e nove por cento delas está num livro’

‘Se você esconder sua ignorância, ninguém lhe baterá e você nunca irá aprender’

‘Tudo está bem quando tudo acaba bem’


Tão antigo e tão atual... INDICO!

Casar ou Estudar?

Esses dias li um artigo super interessante no NY Times, discutindo os resultados de várias pesquisas recentes, indicando que, quanto mais capital humano uma mulher tem (capital humano é medido através de formação acadêmica e renda salarial), maiores as chances de ela não apenas casar, mas também ter um casamento duradouro. Essa estatística é baseada em dados americanos e ingleses, mas já é um bom começo.

Achei o artigo bem interessante, pois muitas pessoas ainda acham que existe um lado negativo entre buscar uma educação superior e ter um relacionamento, e acabam abrindo mão de metas acadêmicas e profissionais para satisfazerem o parceiro, o que é uma verdadeira pena. De acordo com as pesquisas, mulheres que têm diploma de faculdade tem uma probabilidade maior do que as que possuem 2º grau de estarem em um relacionamento estável. Adicionalmente, a porcentagem de mulheres com grau universitário que ainda estão casadas após os 40 anos de idade é maior do que as que possuem apenas o 2º grau. 
Não acho que todo mundo TENHA que casar, tá? Acredito que dá para ser feliz sozinho e admiro bastante pessoas que preferem não casar, mas acho importante acabarmos com esse estigma negativo que "mulher com sucesso acadêmico/profissional fica pra titia."
 
Um dos pontos relevantes que o artigo apresenta é a divisão do trabalho doméstico, que, de acordo com as pesquisas, é um dos dois maiores indicadores da satisfação feminina no casamento. Quanto mais alta for a formação acadêmica da mulher em relação ao seu marido, mais egalitária é a divisão do trabalho doméstico. E isso eu acho um ponto super relevante: muitos homens (especialmente no Brasil, infelizmente) ainda tem a impressão que o trabalho doméstico é exclusivamente um âmbito feminino. Nossa, eles não poderiam estar mais enganados... porque pesquisas também indicam que mulheres se sentem muito mais atraídas sexualmente por homens que ajudam no lar (e pelo menos no meu caso, posso garantir que isso é verdade). 

Se isso não for motivo suficiente para acabarmos com o estigma de que existe uma escolha entre nossa própria educação e um relacionamento amoroso feliz, ainda apresento os resultados das pesquisas de Pepper Schwartz  e Virginia Rutter, da Universidade de Washington concluindo que mulheres que têm diploma universitário demonstram interesse maior por sexo, assim como maior interesse em experimentar posições sexuais diferentes e têm orgasmos mais frequentemente.

Infelizmente, ainda existe muitos homens que se sentem emocionalmente inferiores quando suas mulheres conquistam mais academicamente e profissionalmente. As pesquisas concluem que, em geral, esses homens se identificam mais como provedores no relacionamento, e não parceiros, e essa característica é correlacionada a infelicidade no casamento. Para esses pobres coitados, deixo apenas uma frase do próprio NY Times, "Poucas mulheres realmente querem se casar com um homem cujo pênis sobe e desce em conjunto com o tamanho de seu salário ou o prestígio do seu diploma."